quarta-feira, janeiro 28, 2009

Os textos do 10º Jogo das 12 Palavras estão no Eremitério.
Aqui deixo mais 3 textos feitos com as 12 palavras obrigatórias:

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a mulher pastoreava o rebanho há quarenta e dois anos. começara, menina ainda, depois da escola. um autêntico e límpido sentimento de liberdade e gratidão pela beleza do mundo que conhecia enchia-a quando vagueava pelos campos com as ovelhas e o cão, de seu nome Travesso.
de vez em quando fazia umas derivas ao percurso de pastoreio estipulado pelos pais alargando os horizontes. era este um querer muito forte. uma ousadia alicerçada numa paixão, podemos dizer.
o casamento e o nascimento dos filhos amansaram-na, substituindo-a por outra paixão. a que nutria pela família. o seu universo exterior encurtou-se à medida que o interior cresceu em afecto ao marido e aos filhos. continuou a pastorear, a tratar de uns campos que davam legumes frescos para a casa e alimento aos animais de capoeira - assim reforçando a economia doméstica - e, claro, da casa e da família. a televisão fez a sua entrada, considerada importante para alargar os horizontes dos filhos. Madalena via os programas depois do jantar e da cozinha arrumada, mas sem grandes entradas pela noite, pois era necessário madrugar.
muito do que via era-lha tão distante, tão irreal, que não lhes dava mais valor do que às fábulas que, em menina, lhe contavam à lareira e ao som de cujas palavras e imagens que estas evocavam adormecia sendo depois transportada ao colo para a cama.
mas os filhos tornaram-se homens, constituíram família. partiram para o estrangeiro buscando vida melhor. o marido morreu. Madalena ficou só. no seu pequeno mundo. os filhos e os netos traziam fotos, contavam histórias de outros mundos, traziam filmes de suas vidas por lá…
um novo e singular estado de alma tomou-a e foi ganhando espaço. uma quase avidez. uma fome de ver esse outro mundo, esses outros mundos que ignorava renasceu tornando-se o objectivo supremo de sua vida.
organizou-se, e pôs-se a caminho. primeiro decidiu visitar filhos, noras e netos bem como aqueles tão diferentes países nos hábitos, costumes e modos de vida que desconhecia, mas sabia pelas imagens e relatos que lhe faziam. acompanhada pela família primeiro, depois só, correu as cidades. andou exaustivamente pelas ruas. caminhou lentamente, ouvindo as falas diversas e desconhecidas e a vontade de mais conhecer cresceu. fortaleceu-se. nunca na vida fora ao cinema. lembrava-se de, em criança, ter visto uns filmes de Chaplin num ecrã improvisado com lençóis. lá, na distante aldeia. eram filmes itinerantes - uma espécie de caixeiro-viajante de sonhos - cada um levava a cadeira de casa e pagava uma entrada. mas num cinema mesmo nunca vira. pensou que era semelhante à televisão, mas muito maior. melhor. penetrava no ser. desencadeava fortes emoções. pensou que era uma outra forma de viajar. um dia a família disse que iam a um mole fazer compras. umas roupas novas mais adequadas do que as que trouxera da aldeia.
- um mole? mas que raio de coisa é um mole?
explicaram-lhe que em Portugal se chamavam Centros Comerciais ou Shoppings que era a palavra para compras e que lá se encontravam lojas de todo o tipo em grande quantidade e variedade de bens.
lá chegados o espanto tomou-a apesar de já ter apercebido que as dimensões do mundo em que vivera e conhecia nada mais eram do que um grão de areia quando comparados com o daqueles outros tão novos e ricos. correram o Moll, fizeram as compras, mas não deixou de pensar como aquela faceta do imenso mundo que desconhecia era escaganifobética e o barulho um imenso e cansativo salsifré. quis sair para as ruas, respirar ir a pé para casa. foi isso que fez ante o espanto da família receando que se cansasse e perdesse, pois grande era a distância. escreveram a morada num papel que a obrigaram a meter na mala recomendando-lhe que caso se baralhasse se metesse num táxi e desse o papel ao motorista. que sim. que ficassem descansados. e lá foi. devagar. respirando o frio ar semelhante ao das serranias, mas menos puro.
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ouvi bem?
sem qualquer deriva na voz chamaste-me escaganifobética?

meu amigo, sou uma mulher singular e autêntica.
não sou uma boneca. uma qualquer Barbie…tão pouco figura de fábula ou de estória de encantar. supremo e límpido é este novo querer nascido da paixão pela vida que, sem salsifré, me conduziu a novos e diferentes trilhos esboçando o renascer do ser que me habita.
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o que poderia ser mais autêntico do que aquele amor-paixão, aquele sentimento novo. tão limpído. aquele singular e supremo bem-querer que, sem dúvida nem deriva, de assalto, nos tomou o coração inundando-nos de uma força interior. que nos levou a renascer devolvendo-nos a alegria de viver?

nas nossas costas diziam:
- vivem uma fábula. sempre foram uns seres estranhos. sonhadores. escaganifobéticos até!

indiferentes ao diz que diz, no meio do alarido, do salsifré que o nosso amor provocou vivemo-lo intensamente e, passados quarenta e dois anos é ele que nos alimenta e alimentará o luminoso dia a dia. até ao fim.